Tesouros que acompanharam o chamado faraó-menino na sua viagem ao Além começaram a vir à tona há cem anos, em novembro de 1922
Até onde sabemos, o reinado de Tutancâmon (1341 a.C.-1323 a.C.) foi breve e marcado por fracassos. Ele morreu quando ainda era adolescente e não deixou herdeiros, o que pôs fim ao domínio de sua família sobre o antigo Egito. Ironicamente, porém, nenhum outro faraó possibilitou um mergulho tão vívido no passado egípcio quanto ele, com uma riqueza de detalhes aparentemente inesgotável.
Os tesouros que acompanharam o chamado faraó-menino na sua viagem ao Além começaram a vir à tona há cem anos, em novembro de 1922. Foi então que o arqueólogo britânico Howard Carter, acompanhado de seu financiador, George Herbert, conde de Carnarvon, começou a explorar a sepultura do jovem monarca no vale dos Reis (sul do Egito).
A tumba não estava propriamente intacta, ao contrário do que muita gente imagina. O amontoado de objetos nos recintos mais externos da estrutura, bem como a presença de fragmentos de pedra calcária, indicam que o local tinha sido alvo de saqueadores relativamente pouco tempo após a morte do faraó.
Para sorte dos egiptólogos do futuro, os ladrões da Idade do Bronze levaram pouca coisa, e o túmulo voltou a ser selado às pressas logo depois dos furtos. Por ter sido construído no chão do vale dos Reis, e não nas encostas rochosas adjacentes, ele acabou sendo totalmente recoberto por sedimentos e ficou esquecido até que a equipe de Carter o redescobrisse no século 20.
O conteúdo da tumba “é um microuniverso da vida de um faraó e de um adolescente privilegiado do Egito antigo”, resume a arqueóloga Márcia Jamille, mestra pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e criadora do canal Arqueologia Pelo Mundo no YouTube.
“São objetos com finalidades religiosas e funerárias, mas temos ainda exemplos de móveis, brinquedos, roupas. Até uma mecha dos cabelos da rainha Tiye, avó do faraó, foi encontrada dentro de uma caixa, guardada com cuidado. Alimentos embrulhados também”, conta.
Outro detalhe que talvez explique o aspecto meio entulhado do interior da sepultura é o fato de que ela é relativamente pequena e modesta -ao menos em relação ao esperado para um faraó. Isso pode indicar que o túmulo originalmente foi construído para outra pessoa, alguns degraus abaixo de Tutancâmon na hierarquia egípcia, e depois reaproveitado para abrigar os restos mortais do jovem rei.
Seja como for, o túmulo do monarca, designado pela sigla KV62, é um dos únicos exemplos de sepultamento de um faraó praticamente intacto. Segundo Márcia Jamille, a única descoberta comparável feita até hoje é a do enterro do rei Psusenes 1º, descoberto em 1940, com uma máscara mortuária de ouro e um sarcófago de prata.
Psusenes, no entanto, teve o azar de ser sepultado na região de Tânis, área relativamente úmida no delta do rio Nilo. Com isso, muitos artefatos associados ao funeral acabaram se deteriorando. Por outro lado, a secura do vale dos Reis preservou com perfeição mais de 5.000 objetos depositados ali junto com a múmia de Tutancâmon, inclusive os feitos de madeira e de couro.
De um lado, a enorme lista de bens funerários era uma forma de fornecer ao faraó todos os recursos necessários para a sua permanência no mundo dos mortos. Um indício claro disso é a presença de 413 “shabtis”, estatuetas que, segundo a crença egípcia, passariam magicamente a atuar como pequenos serviçais do defunto no Além. Para isso, era comum que eles recebessem inscrições da coleção de textos místicos conhecida como Livro dos Mortos.
Por outro lado, os artefatos, as inscrições e a múmia do rei trazem pistas, nem sempre fáceis de interpretar, sobre a trajetória de sua dinastia e a situação política do Egito durante seu breve reinado.
Ao que parece, Tutancâmon se tornou rei com oito ou nove anos de idade, morrendo aos 19 anos. Casou-se com Anquesenâmon, sua meio-irmã, prática comum no Egito faraônico. Dois bebês do sexo feminino, um deles prematuro, foram mumificados e enterrados junto com o faraó.
As análises de DNA feitas com material obtido de múmias ainda são controversas devido ao impacto do processo de mumificação sobre o genoma. Mesmo assim, os dados existentes até hoje indicam que as bebês eram filhas do faraó e que ele era neto de Amenófis 3º, um dos maiores monarcas da história egípcia. Ainda segundo essas análises, o pai de Tutancâmon estaria enterrado na tumba KV55 (também no vale dos Reis) e seria o controverso faraó Aquenaton.
Outra pista nesse sentido está no suntuoso trono encontrado na sepultura. Ele representa Tutancâmon e sua rainha-irmã, mas atrás dele há uma inscrição com o que parecem ter sido os nomes originais do casal real: Tutancaton e Anquesepaton. A chave do mistério é o final desses nomes. “Aton”, nome dado ao disco do Sol, era a divindade predileta do faraó Aquenaton (daí a designação que ele adotou).
Aquenaton promoveu uma grande e impopular reforma religiosa, na qual Aton se tornou uma espécie de deus único do Egito, enquanto o culto dos demais deuses passou a ser negligenciado ou mesmo perseguido.
Com a morte de seu provável pai, o herdeiro decidiu retomar a religião tradicional egípcia (ou foi forçado a isso). Daí a mudança para Tutancâmon, incorporando na designação real o nome do deus Amon.
O último mistério tem a ver com as características físicas do faraó. Sabe-se que ele media 1,67 m quando morreu, mas a análise do esqueleto também teria revelado uma série de problemas de saúde, como deficiências na coluna, malformação óssea em um dos pés, malária e uma fratura grave na perna pouco antes de morrer. A presença de bengalas na sepultura sugeriria que ele tinha dificuldades de locomoção.
O problema é que o diagnóstico é incerto por conta dos danos severos que o corpo sofreu após a mumificação, diz Márcia Jamille. “Existe até uma piada na egiptologia sobre qual será a nova causa de morte ou estado de saúde dele depois de cada novo documentário.”
Quanto às bengalas, elas também eram vistas como sinal de autoridade, e não necessariamente de algum déficit de mobilidade. Além disso, o túmulo também está cheio de armas -uma espada forjada com ferro oriundo de um meteorito, arcos, flechas, escudos, carros de guerra e uma armadura “de última geração”, feita com couro finamente trabalhado. Também poderia ser um indicativo de que o jovem faraó ao menos era capaz de treinar para o combate.